NOTÍCIAS DE MELGAÇO
23/01/2012
Melgaço
LIVRO VISITA UNIVERSO DAS PARTEIRAS DE MELGAÇO
 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

No interior do Pará, numa cidade chamada Melgaço, há mulheres que nasceram com o dom da vida nas mãos. Aparam meninos e meninas ao longo dos anos, no cotidiano do partejar. Não carregam a pressa dos hospitais, apenas as marcas do tempo que lhe conferem a sabedoria para aprender a esperar. Foi esse universo impregnado de vida, e também de morte, que a antropóloga brasiliense Soraya Fleischer conheceu de perto entre o início de 2004 e final de 2005. Trocou de cenário e até mesmo de hábitos para entender e compartilhar as histórias das parteiras.

 

Soraya conviveu com essas “aparadeiras” de crianças, acompanhou inúmeros partos, ouviu relatos, “jogou conversa fora”, mergulhou no mundo dessas mulheres. O resultado virou o livro “Parteiras, Buchudas e Aperreios - Uma etnografia do atendimento obstétrico não oficial em Melgaço, Pará”, uma publicação da editora Paka-Tatu em parceria com a Edunisc. A seguir, você confere uma entrevista com a autora sobre o trabalho e as relações estabelecidas no período em que morou na localidade.

 

Confiança construída dia após dia

 

P: O que a levou a penetrar nesse mundo das parteiras? E por que Melgaço, especificamente?

R: Estava muito interessada em conhecer os ditos “terapeutas populares”, pessoas que cuidam da saúde dos outros e não são necessariamente profissionais com diploma na mão. São pessoas com muita experiência prática, com muita história de vida e uma dose incrível de disponibilidade para tentar resolver achaques alheios de saúde. Fui parar no Pará pela primeira vez e, em Melgaço, mais especificamente, porque foi nessa cidade que os cursos da década de 1990 tiveram início. O município, então, tem uma experiência acumulada de visitas de gestores e profissionais de saúde, indicadores para avaliação e, melhor de tudo, uma concentração de parteiras ativas e dispostas a conversar sobre isso.

 

P: Depois do processo de pesquisa que resultou no livro, o que mudou no seu olhar?

R: Eu nunca antes tinha tido a chance de conhecer “terapeutas populares” e foi nos anos de 2000 a 2003 que tive a sorte de ouvir suas histórias de vida e de luta. Sou moça de cidade grande, cidade urbanizada em que todo mundo nasce em hospital. Mas, uma geração antes, a geração de meus pais nasceu com frequência no âmbito doméstico, pelas mãos de parteiras. Então, realmente, é uma mudança grande e muito rápida. Para mim, foi uma experiência muito rica ter conhecido o parto domiciliar feito por parteiras ribeirinhas. Mudou meu olhar sobre o parto, sobre as possibilidades de lugar e de atendimento na hora do parto e sobre o enorme significado da atenção básica de saúde oferecidas pelo SUS.

 

P: Pelo que se percebe no livro, você teve muita receptividade das parteiras e da comunidade local. Como se construíam essas relações?

R: Não tive uma relação de intimidade com todas as mulheres, eram muitas e tampouco era meu objetivo. Mas com dona Tabita, dona Maria, dona Zuleide, dona Jandira, dona Neném, por exemplo, eu encontrava mais seguidamente e pude conversar sobre outros assuntos diferentes do partejar. Como qualquer relação humana, esse laço foi construído dia a dia, aos poucos, devagarzinho mesmo. No início, não sabiam quem eu era, de onde eu tinha vindo. Aos poucos, elas também foram me fazendo perguntas para saber de minha vida e entender porque eu estava ali há tanto tempo. Eu queria falar de muitos assuntos e conhecê-las como mulheres daquele lugar e daquele tempo, para além de só conhecê-las como “parteiras”.

 

P: O livro trata, acima de tudo, da vida. Mas há passagens em que o cheiro da morte se faz presente, como o momento em que você relata um parto difícil, cuja gravidez não foi acompanhada pela parteira. A criança acabou nascendo morta. Como você lidou com isso? E qual a atitude das parteiras nesses momentos?

R: Esse parto foi dificílimo. Muito triste mesmo. Fortemente recomendo que os leitores confiram essa história no capítulo 4 do livro. Essa mulher não tinha recebido o “pré-natal das parteiras” e, por conta disso, essas atendentes não sabiam da gravidade dessa gravidez. Era “parto para hospital”, como as parteiras costumavam classificar. Três parteiras foram chamadas para ajudar e não foi possível evitar a morte do bebê durante o processo. O médico da cidade foi chamado e fiquei chocada com a sua completa omissão no caso. Ali tive certeza de que, para muitas autoridades no Brasil, há diferentes tipos de cidadãos e há diferentes tipos de seres humanos, alguns, para essas autoridades, valem menos, têm suas vidas mais dispensáveis.

 

P: Você consegue definir quem são essas mulheres?

R: Em geral, no Brasil, as mulheres que trabalham como parteiras têm mais de 50 anos, foram atendidas por parteiras em seus partos, tiveram parteiras na família (sobretudo a mãe e a avó materna), receberam alguma espécie de “dom” para trabalhar, têm esse “dom” reconhecido e demandado pelas pessoas de sua vizinhança e parentela. Mas há também parteiras bem mais jovens, que estão se iniciando na carreira, e as bem mais velhas, já septuagenárias e octogenárias que ainda são procuradas para atender. Em Melgaço, à época da pesquisa, encontrei 22 parteiras atuando. Mais pesquisas são necessárias para conseguirmos pluralizar várias “definições” do que constitui ser uma “parteira”.

 

LEIA

“Parteiras, Buchudas e Aperreios – Uma etnografia do atendimento obstétrico não oficial em Melgaço, Pará”, de Soraya Fleischer. Onde encontrar: Editora Paka-Tatu.

 

(Diário do Pará)


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